O 25 DE ABRIL NA EXPRESSÃO AUTOBIOGRÁFICA
Os recursos a seguir apresentados servirão como base de trabalho para o estudo dos textos autobiográficos, no âmbito do qual se pretende estabelecer uma relação com outras formas de expressão artística.
A temática transversal às várias tipologias seleccionadas – carta, ficção autobiográfica,diário e memórias – resulta da importância que ela tem na Literatura do século XX, nomeadamente na obra dos autores escolhidos.
O estudo dos textos autobiográficos desenvolver-se-á recorrendo a duas modalidades de trabalho: trabalho de grupo e trabalho individual.
PARTE I - TRABALHO DE GRUPO
A turma dividir-se-á em quatro grupos e cada um deles trabalhará um tipo de texto, obedecendo a um guião comum. Os links à direita servirão como base de dados para pesquisa da informação necessária. Esta poderá, obviamente, ser complementada com outra que o grupo considere pertinente e que não conste da lista dada. No final, cada grupo deverá criar um PPS que servirá de base à apresentação oral do trabalho realizado.
GUIÃO DO TRABALHO
• Vida e obra do autor – apresentação sumária;
• Aspectos distintivos do tipo de texto trabalhado;
• Selecção de uma música e de uma obra plástica para abordagem conjunta numa perspectiva intertextual;
• Valor documental do texto seleccionado.
PARTE II
TRABALHO INDIVIDUAL
Depois de concluídos e apresentados os trabalhos de grupo, todos os alunos visionarão o filme Capitães de Abril realizado por Maria de Medeiros. O objectivo é, no final, redigir um texto de opinião sobre o documento visto, pelo que deverão, durante o seu visionamento, proceder à tomada das notas que considerem necessárias à realização do exercício individual de escrita.
PARTE III
Realização de um quizz sobre frase complexa.
PORTUGAL ANTES DA REVOLUÇÃO
Meu amor querido
Recebi finalmente hoje - e só hoje! - o teu telegrama e as primeiras notícias do nascimento. Confesso que não esperava uma morena, e que fiquei bastante espantado com o facto. Mas toda a gente me diz que é muito bonita: a minha mãe, a avó, as tias, etc. Isso já eu calculava, porque, enfim, nascida de tal mamã tinha forçosamente de o ser. Mas fiquei um bocado despeitado, confesso, por, de mim, só ter os dedos dos pés.
O atraso das cartas daqui manter-se-á até voltar a Gago Coutinho. É que o isolamento é muito grande, e as conexões com Luanda limitadíssimas. Mas não há novidade. Ontem não te pude escrever por não ter estado aqui. Andei a passear pela mata por causa de uns problemazitos que apareceram.
Fiquei muito indignado com a intrusão da família na nossa casa. Claro que é preciso conhecer o atabafante amor da minha família, habituarmo-nos a ele, e perdoá-lo. Nas ocasiões graves e importantes eles são realmente extraordinários, e isso é muito bom. O problema é o reverso da medalha. Mas basta uma palavra para a coisa entrar nos eixos, e vou dizê-la. A tua carta vinha tão furiosa que não tenho outro remédio. Eles a mim nunca me aborreceram, por causa das minhas dentadas.
Eu não gosto nada do nome de Maria só. Não quero. É Maria José, esta. E a próxima Sofia e não há mais discussão. De resto, como é tão parecida contigo, até ficava mal outro nome.
Tem piada que todos os meus sonhos têm dado certos! Por duas vezes sonhei que era rapariga. Não sei se to disse. E, ontem, sonhei que era morena. Acordei incrédulo, e um bocado irritado com a ideia. Já passou.
A propósito de sonhos durmo agora muito mal, acordando vezes sem conta. Ontem passei boa parte da noite de olho aberto, com uma dor fortíssima no estômago. Deve ser das porcarias que sou obrigado a comer. A vontade que eu tenho de voltar a ter uma vida normal...
Recebi cartas de todo o lado. Vou responder à família por junto, e poupo tempo e cuspo. A F. escreveu-me, como é seu timbre, uma carta parvíssima. Deves estar agora em casa dos teus pais, suponho. O emprego acabou-se, conforme eu disse. De hoje em diante estudas só e o dinheiro que se vá lixar. E depois, o facto de se não pagar renda da casa já é uma ajuda. Estou muito mandão hoje, não estou? Desculpa. Detesto pessoas autoritárias. E detesto-me quando o sou. Mas achava melhor assim. Eu quero é que vás para a nossa casa. Quero, quero, quero. Bolas!
Vamos ver quando vêm os retratos. Mas eu, desde que ando nesta aventura, o que tenho, sobretudo, de ter, é paciência. Uma paciência de Job. E uma certa indiferença pelo que me possa acontecer. De nada serve preocupar-me comigo, porque me não ajuda. Faltam 556 dias para isto acabar, o que é uma infinidade. E já começo a duvidar que isso aconteça. 89 para te ver. E já começo a duvidar que etc.
Tudo isto é obsoleto e triste. Ainda te lembrarás de mim? Às vezes nem eu me lembro de mim próprio. Olho-me ao espelho e é um estranho que vejo. Mas estou na mesma por fora, acho eu. Por dentro é que mudei. Surpreende-me o meu próprio silêncio, e a minha voz. Falo pouco, e tudo o que digo é num tom seco e melancólico, que não era o meu. E tenho sempre uma ruga na testa e uma dobra amarga na boca. As tuas cartas chegam cheias de amor. Leio-as como quem reza. Esperemos que tudo isto passe. Eu gosto tudo de ti. Beijinhos para a morena minha filha, que logo, por mal dela, foi herdar o que tenho de mais horrendo.
Muitas saudades e beijos. Sê feliz, sim?
António António Lobo Antunes, D’este viver aqui neste papel descripto – Cartas da Guerra
A Guerra Colonial provocou um grande descontentamento na sociedade portuguesa pelo horror intrínseco à guerra e pela perda de muitas vidas.
Para além da guerra, a prisão por razões ideológicas, nomeadamente de intelectuais, provocava um grande terror e ansiedade.
«Passagem pelo cárcere»
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Miguel Torga e o Aljube |
Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora fiquei reduzido a uma cara fotografada de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover.
- Volta a cara… Espalma agora aqui a pata… Levanta-te…
Conhecia já de nome, até bem demais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão – os famigerados «moinhos» - as vítimas renitentes à confissão. Dias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançara mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava no rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas, ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde – um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia. Sádica e cientificamente concebida, a máquina de trituração funcionava em tais moldes de eficiência que as peças – tão impessoais que, embora porfiadamente o tentasse, a minha atenção não consegui reter uma fisionomia – já nem sequer necessitavam de impulso motor. Actuavam automaticamente com a mesma brutalidade, fosse qual fosse o cascalho caído na moega que uma dissimulada e disseminada coorte de angariadores nunca deixava vazia. […]
- És então escritor’
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos…
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta… Vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.
- Muito me contas! E queres então fazer a revolução social?
- Quero que me deixe em paz.
- Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntazinhas…
- Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz.
- Tens. Ora pensa lá bem…
- Está pensado.
- A sério?
- A sério.
- Ouve: eu podia pôr-te aí já a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde… Verás que daqui a alguns dias mudas de ideias…
- Não mudo.
- Mudas, mudas…
Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.
- Tu parece que tens fumaças de valentão! Sossega, que eu tiro-tas…
- Não tira.
Ainda fez um gesto. Mas deteve-se, sorriu escarninhamente, e chamou por um subalterno.
- Este segue também…
A redução inicial do preso a um documento de arquivo, o longo compasso de espera num compartimento pintado de cores febris que desvairavam os olhos e a imaginação, e a girândola final de provocações tornavam a permanência ali, de certa altura em diante, intolerável como certas dores.
E foi quase a liberdade que senti, quando, de cambulhada com outros companheiros de infortúnio, dentro de um carro celular, abandonei aquele antro sinistro.
In O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974
«Trovas do Vento Que Passa»
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira
Texto: Manuel Alegre